TUDUM 1x03: O Império dos Algoritmos / O Regulamento Contra-Ataca!

Arthur Albano
21 min readJul 11, 2023

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Essa é a transcrição do terceiro episódio do podcast “TUDUM: Como a Netflix mudou o jogo”, um produto produzido por Arthur Albano, João Pedro Maia e Odara Creston para a disciplina de Cultura e Linguagem das Mídias do curso de Jornalismo da Universidade Federal da Ceará, a UFC.

Para escutá-lo, clique aqui.

Algoritmos podem parecer chatos. Matemática nem sempre é a matéria favorita de alguém na época da escola, no entanto, quando falamos de grandes empresas, algoritmos são fundamentais. São eles que mantém a roda girando. Eles sustentam e organizam os dados obtidos em uma sociedade em que tudo é registrado, analisado e sumarizado.

No caso da Netflix, a empresa não seria nada sem seus algoritmos.

Olá, meu nome é João Pedro Maia e você está ouvindo o “Tudum: Como a Netflix mudou o jogo?”, um produto da disciplina de Cultura e Linguagens das Mídias do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Ceará, a UFC, produzido em conjunto com meus colegas Arthur Albano e Odara Creston.

Antes de entender exatamente como a Netflix aplicou seu algoritmo na série Stranger Things, precisamos voltar um pouco e entender como esse algoritmo funciona. Para ajudar na missão, Gibson Biddle, ex vice-presidente de gerenciamento de produtos da empresa, escreveu um artigo intitulado “Uma breve história da personalização da Netflix”, publicado em 1 de junho de 2021 no seu Medium.

Gibson relembra que no começo dos anos 2000, a Netflix instaurou seu primeiro algoritmo de filtragem colaborativa chamado de Cinematch. Ele funcionava da seguinte forma. Se você gostasse de filme A e de filme B, e depois assistisse um filme C, então a pessoa que assistiu o mesmo filme A e o mesmo filme B provavelmente vai gostar do filme C.

Em 2001, a empresa também criou o sistema de avaliação de um filme em cinco estrelas, coletando bilhões de avaliações dos seus assinantes. No entanto, existiam “barras de estrelas” com funções diferentes, como: classificação média, classificação esperada e a classificação dos amigos. O teste se tornou um pouco caótico.

Ainda na era dos DVD’s, em 2002 a empresa começou a operar com algoritmos múltiplos. Segundo Gibson Biddle, existiam três na época:

Armazenamento dinâmico: Este algoritmo indicava se o DVD estava disponível. No final da era do DVD, o algoritmo até determinava se um DVD estava disponível no hub local de um membro. Em 2008, a Netflix comercializava apenas títulos disponíveis localmente para aumentar a probabilidade de entrega de DVD no dia seguinte.

Metasims: Este algoritmo incorporou todos os dados do filme disponíveis para cada título — sinopse do enredo, diretor, atores, ano, prêmios, idioma, etc.

Pesquisa: No início, havia pouco investimento em pesquisa, já que a equipe presumia que os assinantes procuravam DVDs de novos lançamentos, tornando a economia da empresa mais desafiadora. (Um modelo financeiro simples: custa 3 dólares para a Netflix enviar e receber novos lançamentos, 2 dólares para títulos de 3 a 12 meses e 1 dólar para títulos lançados há mais de um ano). A equipe descobriu que os títulos que os membros escolhiam por meio de pesquisa incluíam muitos títulos mais antigos, menos caros e de cauda longa, então eles acabaram aumentando o investimento em pesquisa.

Gibson também detalha a estratégia de personalização da Netflix em 2006.

A equipe da Netflix se concentrou em quatro estratégias principais:

1. Reunir dados de gosto explícitos, incluindo classificações de filmes e programas de TV, classificações de gênero e dados demográficos.

2. Explorar dados de gosto implícitos, como DVDs que os assinantes adicionaram à sua lista de filmes ou posteriormente, quais filmes os membros assistiram.

3. Criar algoritmos e táticas de camada de apresentação para conectar os assinantes com filmes que eles vão adorar. Essa estratégia se concentrou no uso de dados de gosto explícitos/implícitos, juntamente com muitos dados sobre filmes e programas de TV (avaliações, gêneros, sinopse, atores principais, diretores, etc.), para criar algoritmos que conectavam os assinantes aos títulos. A expectativa era que a Netflix também criasse uma interface de usuário simples que fornecesse suporte visual para escolhas personalizadas.

4. Melhorar as classificações médias de filmes para cada membro , conectando-os com melhores filmes e programas de TV. A suposição era de que, se a Netflix conectasse seus membros com filmes e programas de TV de maior qualidade, eles reteriam melhor o assinante.

A hipótese era de alto nível: a personalização melhoraria a retenção, tornando mais fácil para os membros encontrarem filmes que vão adorar.

Vale lembrar que tudo isso ocorreu antes da empresa lançar seu streaming, de forma que ela já trabalhava aperfeiçoando seus algoritmos muito antes de mudar de mercado. A partir de janeiro de 2007, eles tinham dados em tempo real sobre as atividades de seus usuários, e tornou-se claro que no streaming os dados de gosto implícitos eram mais importantes que os dados de gosto explícitos.

Para ajudar a melhorar o algoritmo no streaming, a Netflix teve a ideia de criar um prêmio. Gibble detalha essa história, descrevendo-a em seu artigo:

O Prêmio da Netflix ofereceu 1 milhão de dólares para qualquer equipe que pudesse melhorar o poder preditivo do algoritmo de filtragem colaborativa da Netflix em 10%, conforme medido pelo RMSE, o delta entre a classificação esperada e a real de cada filme. Dois anos depois, a “Bellkor’s Pragmatic Chaos” venceu a competição, derrotando 5.000 outras equipes. Houveram dois insights do concurso:

As classificações não tem o mesmo peso: Os participantes descobriram que as classificações fornecidas para filmes recentes davam mais poder de previsão do que as classificações mais antigas.

Quanto mais algoritmos, melhor: No final de cada ano, a Netflix pagava um prêmio de progresso de 50.000 dólares para a equipe líder. No último dia do ano, as equipes em segundo e terceiro lugar combinaram seus algoritmos e saltaram para o topo da tabela de classificação para receber o prêmio de progresso anual. Foi assim que as equipes aprenderam a importância de combinar muitos algoritmos. É também por isso que os nomes das equipes eram tão estranhos — quando as equipes combinavam seus trabalhos, criavam nomes “mashup”.

Sem falar que a estratégia da empresa em criar um prêmio desses serviu para posicioná-la diante do mercado. Antes, a Netflix era apenas uma empresa de comércio eletrônico, mas ao investir um milhão de dólares para encontrar formas de melhorar seu algoritmo, ela se tornou uma empresa altamente revolucionária. O preço daquela empreitada valia a pena.

Em 2011, a Netflix iniciou o algoritmo “Categoria de Interesse”. Diferente do Cinematch, que era um algoritmo de filtragem colaborativa que previa a possibilidade do usuário de gostar de filme X baseado em gostos cruzados a partir de filme X e Y, o algoritmo “Categoria de Interesse” explicava o porquê do assinante poder gostar do filme recomendado. No exemplo de Gibson, ele sugere que o usuário que goste de filme Airplane e Heathers vai ter como recomendação o filme “Curtindo a Vida Adoidado” e “Clube dos Cinco” porque seu gosto se encaixa na categoria de “Comédias Cult dos anos 80”.

A partir desse algoritmo, Gibson também explica como funciona o algoritmo de personalização da Netflix.

Em termos mais simples, a Netflix cria uma lista de classificação forçada de filmes para cada usuário — do conteúdo com maior probabilidade de agradar ao menor. Em seguida, essa lista é filtrada, fatiada e dividida de acordo com os atributos dos filmes, programas de TV e gostos do assinante. Por exemplo, um filtro mostra uma sub-lista de filmes e os apresenta em uma linha chamada “drama peculiar com heroínas femininas fortes” ou “programas de TV espirituosos e irreverentes”. Outros títulos de linha podem incluir “Porque você assistiu Stranger Things , achamos que você vai gostar…” ou “Top 10 para você”.

A abordagem de personalização da Netflix tem três componentes:

1. Uma lista de classificação forçada de títulos para cada membro.

2. Uma compreensão dos filtros mais relevantes para cada membro para que os algoritmos possam apresentar um subconjunto de filmes e programas de TV da lista acima.

3. A capacidade de entender as linhas mais relevantes para cada membro, dependendo da plataforma, hora do dia e muitos dados explícitos/implícitos sobre gostos de filmes.

A beleza dessa abordagem é que essas linhas, com o contexto apropriado, podem ser exibidas em qualquer dispositivo ou tela. É fácil exibir a mesma estrutura de linha em todos os navegadores e dispositivos.

Para ver se seus algoritmos funcionavam, era preciso que a Netflix aplicasse testes A/B, que são experimentos realizados com o objetivo de comparar variáveis estratégias de marketing. No entanto, os testes A/B envolvendo a personalização da experiência do usuário com a Netflix foram controversos, já que a personalização era testada em contraponto a uma experiência simplificada em que as recomendações eram escolhas aleatórias de filmes. Gibson diz que os engenheiros da Netflix reclamaram que o teste do algoritmo de personalização foi uma perda de tempo, mas o fato é que a personalização realmente criava uma experiência melhor para os assinantes. Isso era fato

Sobre como essa personalização foi aplicada na criação de conteúdo, Gibson detalha de uma forma interessante.

A esta altura da história da Netflix, está claro que a personalização encanta os clientes de maneiras difíceis de copiar. Ao tornar os filmes mais fáceis de encontrar, a Netflix melhora a retenção, o que aumenta o valor da vida útil. E a tecnologia de personalização da Netflix é difícil de copiar, especialmente em grande escala. Mas há outro aspecto da personalização que melhora a margem da empresa: a capacidade da Netflix de “dimensionar corretamente” seus gastos com conteúdo. Aqui estão alguns exemplos de dimensionamento correto da Netflix com minhas melhores estimativas sobre vários investimentos em conteúdo:

1. Com base no conhecimento dos gostos de seus usuários, a Netflix prevê que 100 milhões de membros assistirão a Stranger Things e investiram 500 milhões de dólares na série.

2. A equipe de ciência de dados previu 20 milhões de espectadores para o peculiar desenho animado adulto Bojack Horseman, então a Netflix investiu 100 milhões de dólares nesta série animada de TV.

3. Com base na previsão de que um milhão de assinantes assistirão a documentários de escalada do Everest, a Netflix investe 5 milhões de dólares nesse gênero.

A Netflix tem uma enorme vantagem em sua capacidade de dimensionar corretamente seu investimento em conteúdo original, impulsionada por sua capacidade de prever quantos membros assistirão a um filme, documentário ou programa de TV específico. Observação: a Netflix não traz abordagens baseadas em dados para o processo de criação de filmes — elas não envolvem os criadores.

Por essa razão, é errado apontar Stranger Things como uma criação dos algoritmos. Eles podem apenas provar que é uma boa aposta investir na série, mas não que elementos vão estar nela para torná-la um sucesso. A arte, felizmente, ainda permanece como uma experiência subjetiva.

De volta aos algoritmos, a expansão da empresa causou uma dúvida em seus engenheiros. A equipe de personalização estava em dúvida se deveria informar ou não o idioma nativo e o país de cada assinante para melhorar a experiência. A resposta através de testes A/B provaram que isso não importava. Os gostos de cada usuário eram tão idiossincráticos que o idioma e a nacionalidade não alterava em nada a preferência de filmes. Por essa razão, a Netflix decidiu apostar em uma interface personalizada a partir do ano de 2016.

Gibson conta como esse recurso foi testado:

Três dos valores culturais da Netflix são curiosidade, franqueza e coragem. A Netflix incentiva os novos funcionários a desafiar a sabedoria convencional quando ingressam na empresa. A Netflix aprecia o valor de “olhos novos” e incentiva uma cultura iconoclasta.

Um líder de produto recém-contratado na Netflix sugeriu que a equipe testasse “linhas flutuantes”. A ideia era que linhas como “Top 10 para Gibson”, “Recém-lançado” e “Continuar assistindo” deveriam ser diferentes para cada assinante e até mudar dependendo do dispositivo, hora do dia e outros fatores. A sabedoria convencional sugere que um design de site inconsistente confundiria e incomodaria os clientes, por isso é melhor manter a interface consistente. Mas a “velha guarda” permitiu que o novato testasse mesmo assim.

Surpreendentemente, a interface inconsistente teve melhor desempenho nos testes A/B. Hoje, até a interface do usuário é personalizada com base nas preferências de gosto do usuário.

A partir de 2018, Gibson diz que a Netflix entrou na era da “arte do filme personalizada”, a qual ele descreve da seguinte maneira:

A equipe de personalização da Netflix deseja apresentar a você o título certo no momento certo com o máximo de contexto possível para incentivá-lo a assistir a esse título. Para fazer isso, a Netflix usa visuais personalizados que atendem às preferências de gosto de cada membro.

Um exemplo disso é a série Stranger Things, que não teve uma grande campanha publicitária em seu primeiro ano, mas conseguiu uma base massiva de telespectadores graças ao algoritmo de personalização. Como expõe o artigo “Viciado em Stranger Things? Veja como a Netflix sugou você”, da autora Joan E. Solsman, publicado no site CNet.com, no dia 23 de outubro de 2017:

A Netflix descobriu que as pessoas que gostam de documentários eram mais propensas a assistir “Stranger Things” se tivesse uma foto do chefe Hopper em seu uniforme. Pessoas que gravitam em torno de ação, terror e romance eram mais propensas a clicar no título com uma imagem de Eleven olhando intensamente, enquanto os fãs de drama eram mais atraídos por uma foto de Eleven de longe.

Escolher as imagens é “uma mistura de arte e ciência. A arte vem de encontrar uma diversidade de imagens fortes para o show. Então, por meio de um método de comparação de imagens chamado teste A/B, em um dia, chegamos à conclusão ‘esse tipo de imagem está ressoando com esse tipo de visualizador’, disse Todd Yellin, vice -presidente do gerenciamento de produtos da Netflix.

Por fim, chegamos em 2021, na qual o algoritmo da Netflix leva ao que Gibson chama de “personalização definitiva”, na qual você clica em um botão e o serviço reproduz um filme com altas probabilidades de você gostar. Reed Hastings, fundador da Netflix, chamou esse botão de “Estou com Sorte”.

Gibson finaliza seu artigo com uma reflexão.

Observe que quando você acessa seu perfil em um sistema baseado em TV, há um novo botão “Reproduzir algo”. Pense neste botão como um indicador de quão bem os algoritmos da Netflix conectam os assinantes com os filmes que eles vão adorar. Eu acho que 2–3% das jogadas vêm desse botão hoje. Se esse botão “Reproduzir algo” gerar 10% de uso daqui a alguns anos, é uma forte indicação de que a personalização da Netflix está fazendo um trabalho melhor conectando seus membros com filmes que eles vão gostar.

Hoje, mais de 80% dos programas de TV e filmes que os membros da Netflix assistem são comercializados para você pelos algoritmos de personalização da Netflix.

O que ele quis dizer com isso? Que a Netflix está vencendo. Seus algoritmos conseguiram dar a ela uma vantagem tecnológica que os outros streaming concorrentes dificilmente vão alcançar. É justamente pela facilidade de acesso ao seu catálogo e à interface que a Netflix se destaca. E tudo graças aos algoritmos.

Mas nem tudo são flores para a empresa cuja sede se localiza em Los Gatos, na Califórnia. Se ela revolucionou o mercado e se estabeleceu como uma gigante, ela também precisa se submeter à justiça. Ao tornar-se uma multinacional da indústria audiovisual, a Netflix arrumou um grande problema…

A regulamentação de suas operações em diversos países.

[Começa a tocar Mashup “Netflix Has a Problem” com o instrumental da música “America Has a Problem” da Beyoncé]

Nesse ponto da história não é segredo que a Netflix se espalhou pelo mundo como um vírus tecnológico. Em 2023, ela pode não ter o mesmo prestígio de outrora com suas séries e filmes, mas a popularidade do streaming permanece intacta.

Mas, será que a Netflix é mais parecida com uma locadora de filmes online ou um grande estúdio de conteúdo? A resposta é que ela não é nem um, nem outro. A Netflix é um amálgama de algoritmos, estúdios, serviços e mídias. E justamente por isso que sua expansão é tão perigosa.

“Como assim?” você deve estar se perguntando. Pense em Hollywood. A indústria cinematográfica norte-americana se concentra lá. O Oscar premia, em sua grande maioria, filmes produzidos por estúdios como a Warner, Universal, Columbia, Paramount e Walt Disney. Agora imagine se esses cinco estúdios tivessem uma liberdade infinita para reproduzir seus filmes em outros países.

Nesse cenário, como ficariam os cineastas locais? Como a indústria audiovisual independente se sustentaria ao ser esmagada pelo monopólio norte-americano? As respostas não são nem um pouco animadoras. Para impedir que isso aconteça, pelo menos em prática, existem leis de regulamentação para o setor audiovisual que grandes estúdios de cinema precisam obedecer. Agora, como subjugar a Netflix se ela não é considerada um desses estúdios?

No artigo intitulado “Barrando a Correnteza: Governos globais tentam estabelecer limites para gigantes do Streaming. Isso vai funcionar?”, publicado na Variety em 2021, os jornalistas Patrick Frater, Nick Vivarelli, Elsa Keslassy, Naman Ramachandran e K.J. Yossman recapitulam algumas das medidas tomadas para tentar resolver a situação. Segundo eles:

As respostas do governo em diferentes partes do mundo refletiram as tradições políticas e burocráticas locais e provocaram vários graus de ganância e paranoia. Alguns regimes abordaram o vídeo online em termos de identidade cultural, enquanto outros optaram por aproveitar o streaming como um braço da política industrial (na criação de empregos, racionamento de espectro, tributação e licenciamento).

Outros ainda olharam, horrorizados, para os desafios ao governo patriarcal que vêm com escolhas quase ilimitadas, desintermediação e o fascínio pela marca estrangeira. Sua análise da regulamentação do streaming de vídeo se mistura com uma preferência por restringir as mídias sociais e as notícias falsas.

Na Índia, os primeiros movimentos criaram uma sopa de letrinhas de acrônimos e abreviações para novos órgãos reguladores (e autorreguladores). Quantos serão lembrados — ou relevantes — em alguns anos é difícil saber.

Na Austrália, após anos de estagnação, houve uma corrida recente para se opor aos gigantes globais, que são informados de que precisam respeitar, ou pelo menos pagar, pela contribuição local. O governo brigou anteriormente com o Google e o Facebook no setor de notícias, mas ainda não há uma posição unificada da indústria no streaming.

E na Europa, o antigo regime da Televisão Sem Fronteiras — a antiga base para a regulamentação do setor audiovisual — está sendo substituído por uma Diretiva de Serviços de Mídia Audiovisual aprimorada. Ele vem completo com cláusulas familiares que satisfazem o senso de “excesso cultural” de alguns países.

O artigo detalha as ações reguladoras impostas pela Europa, com destaque para o Reino Unido, e outros países como a Austrália, Índia e Coreia do Sul. O Canadá é um dos países que está pressionando a regulação dos streamings. Em artigo escrito para o The Hollywood Reporter por Etan Vlessing e Scott Roxborough intitulado de “O imposto Netflix: legisladores visam cada vez mais os gigantes do streaming para financiar prioridades locais”, as medidas tomadas são descritas da seguinte forma:

No Canadá, onde há anos os políticos procuram as plataformas digitais estrangeiras como uma fonte de dinheiro gratuito para ajudar os produtores locais a competir com Hollywood, uma nova legislação obrigará as plataformas estrangeiras da Internet a subsidiar diretamente o conteúdo local. “O governo canadense vê as grandes empresas de tecnologia como um caixa eletrônico de políticas, de onde elas buscam obter alguns de seus objetivos políticos”, disse Michael Geist, professor de lei de comércio eletrônico e Internet da Universidade de Ottawa, ao The Hollywood Reporter.

Por um tempo, os serviços digitais não nacionais evitaram a tributação direta no Canadá ao não contratar funcionários locais e administrar as operações canadenses fora dos EUA. Como Netflix, Facebook e outros começaram a estabelecer sedes em Toronto, no entanto, eles começaram a cumprir as leis tributárias locais, incluindo a adição do imposto de bens e serviços do Canadá, pago rotineiramente pelos consumidores no ponto de venda, às suas taxas de assinatura e envio dos rendimentos para Ottawa.

Desde então, muitos streamers de propriedade dos Estados Unidos cresceram e se tornaram tão grandes ou maiores do que muitos players locais, levando a pedidos para regulamentar as empresas americanas como se fossem canais domésticos. Várias novas leis visam fazer exatamente isso.

O projeto de lei C-11, que em breve se tornará lei, obrigará streamers estrangeiros e plataformas de mídia social a subsidiar e promover o conteúdo canadense local. O CRTC, o cão de guarda de TV e telecomunicações do Canadá, começará em breve uma nova rodada de audiências e lobby para determinar o quanto os streamers não nacionais precisam mergulhar nos seus bolsos para apoiar a produção local de filmes, TV e conteúdo musical.

Aqui no Brasil, uma das grandes defensoras da regulamentação dos streamings, incluindo a Netflix, é Marina Rodrigues, formada em Cinema e Audiovisual pela ESPM-Rio. Ela atua no setor audiovisual como produtora, tendo tido sólida passagem em empresas como Caliban Produções e a uruguaia MotherSuperior Filmes. Atualmente presta consultoria para curta-metragem e mantém uma produção de conteúdo sobre mercado audiovisual no Simplificando Cinema, na qual expõe dados sobre os processos de regulamentação em diversos países.

Trouxemos alguns trechos de seus textos com a autorização da própria. Além desse conteúdo específico, Marina também traz threads informativas sobre o audiovisual em seu twitter @marinarodri__. Todas as informações sobre suas redes sociais estão na descrição desse episódio.

Em 26 de maio de 2021, Marina escreveu um texto intitulado “Na volta a gente regula”, em que comenta o processo de regulamentação dos streamings em solo brasileiro.

Na última quinta-feira, 20 de Maio de 2021, o Congresso aprovou a MP 1.018/2020 que isenta as plataformas de streaming de contribuírem para o Condecine, arrecadação mais importante que alimenta o nosso Fundo Setorial do Audiovisual (FSA).

A Medida Provisória em questão entrou em tramitação no Senado Federal no fim da tarde desta terça-feira (25) e apesar da votação acirrada e do pedido de supressão da isenção por duas lideranças, o texto foi repassado para o Congresso com as devidas ressalvas.

Não ironicamente, nesta quarta-feira (26), logo pela manhã, tivemos o evento de lançamento do HBO Max na América Latina. Prometendo um grande catálogo e produções ao redor do mundo, peca na falta de simetria com o modelo norte-americano e não entrega o lançamento em simultâneo com os cinemas.

Ora, o que mais os impede disso? Não era a insegurança jurídica que atrapalhava os investimentos mais prioritários para o Brasil? Essa guerra está quase ganha para eles, que gastarão o mínimo e ganharão o dobro, sem nenhuma contrapartida, tampouco diversidade de gêneros e realizadores para suas parcerias por aqui.

Os malefícios dessa inércia ainda serão enormes e incontáveis para o nosso país, mas já podemos prever alguns: a drenagem de recursos para o FSA, tornando quase impossível a continuidade de investimentos e novas produções nacionais nas telas do cinema e da televisão.

Consequentemente — e já muito agravado pela oferta do streaming — as contribuições das programadoras ao Condecine já não fará sentido na prática, uma vez que todas elas estão lançando seus próprios serviços ou presentes na fusão de empresas como é o caso do HBO Max.

O fim do Condecine também significa falta de recursos ao Tesouro Nacional, e que são repassados para outras áreas de interesse da sociedade. Estamos falando aqui de uma perda financeira que irá afetar todo o país em cadeia e sua retomada pode ser ainda mais lenta do que da última vez, quando garantimos a criação da Agência Nacional do Cinema (Ancine).

Comemorar a chegada do HBO Max hoje no Brasil é comemorar a venda de mais uma parte do mercado audiovisual brasileiro ao estrangeiro: é abrir mão de preservar a potência econômica presente dentro do título de segundo maior hub cinematográfico da América Latina. É não se importar com o protagonismo do nosso país em grandes festivais de cinema.

Será mesmo que vale a pena pagar R$ 20,00 mensais para consumir o monopólio de uma empresa que insiste em não querer pagar o SeAC, mas corre atrás de melhorar seus serviços de streaming com uma estrutura cada vez mais robusta de internet?

A clássica frase de mãe, “na volta a gente compra”, cabe bastante para pensarmos na ilusão de acharmos que esse debate pode ser deixado para depois, que 19 projetos de lei ignorados na mesa do Congresso não definem o futuro do Brasil diante ao mercado da indústria dita como a economia do futuro.

Assim como nossas mães, e muito bem colocado pelo meu colega Juliano Cavalca ao mencionar a frase que dá nome ao título: na volta a gente realmente regula? Eu acho que não”

Dois anos depois, a proposta de regular os streamings continua andando à passos lentos. Publicada pela Mostra de Cinema Tiradentes em 2023, vários profissionais do setor audiovisual do Brasil se uniram para escrever uma carta e exigir mudanças estruturais por parte do governo, entre elas, a regularização dos streamings. Reproduzo aqui o trecho exato que cita essa demanda.

Avançar com a urgente regulação da operação do Vídeo Sob Demanda (Streaming) e outras tecnologias de distribuição e veiculação de conteúdo audiovisual, atuais e futuras, com foco na defesa do conteúdo brasileiro independente.

Resolver essa situação é dever do Legislativo, mas para que ele possa fazer isso é preciso entender as causas e consequências do mercado de streaming. A última atualização que se tem até o momento é de um documento elaborado pela Agência Nacional de Cinema, a ANCINE, que esclarece diversos detalhes desse setor. Segundo o artigo, “Como relatório da Ancine dá fôlego à tentativa de regular setor de streaming no Brasil” escrito por Leonardo Sanchez e publicado na Folha de São Paulo em 21 de março de 2023:

Talvez o dado que mais chame a atenção, afinal, seja o que quantifica a participação de conteúdo brasileiro nos serviços de streaming que operam no Brasil. No total, as plataformas têm apenas 10,9% de produções nacionais em seus acervos. Quem se saiu pior foram Vix, que não pontuou, Claro Video, com 0,7%, e Starzplay, com 1,2%, hoje rebatizada de Lionsgate+.

No outro extremo da lista, o Box Brazil Play apresenta 91% de filmes e séries locais, seguido pela assinatura digital de canais Globo, com 57%, e pelo Globoplay, com 30%. Entre as principais plataformas em operação no país, há ainda Amazon Prime Video, com 5,7% de produções nacionais no catálogo, e Netflix, com 5%, além de HBO Max, Star+, Disney+ e Paramount+, abaixo dos 3%.

Para chegar a esses dados, foram considerados apenas os conteúdos que têm registro no IMDb, base de dados online voltada a cinema e televisão que reúne, entre outras informações, o país de origem de cada produção. Com isso, 37% das 32 mil obras analisadas pelo estudo precisaram ficar de fora. Os dados foram coletados em julho do ano passado.

Segundo Tiago Mafra, diretor da Ancine, ‘A participação do conteúdo brasileiro no VoD segue o padrão dos outros segmentos, com grande predominância dos conteúdos estrangeiros. Esse é um comportamento comum na maior parte dos mercados audiovisuais, com exceção de poucos países, como a Coreia do Sul’.

França, Canadá, Portugal, Espanha, Itália e Suíça são exemplos de países que regulamentaram o setor de forma bem-sucedida.

São essas legislações que podem servir de espelho para o Brasil, ao definirem pontos como uma porcentagem mínima de produções regionais nos acervos e a conversão de lucros em investimento para a indústria. Na França, por exemplo, Netflix e companhia precisam destinar de 20% a 25% da renda no país para a criação de conteúdo local.

Para exemplificar um país que regulamentou o streaming de forma eficiente, trouxe um trecho do artigo intitulado “Mercado de streaming na Alemanha bate recorde e prova que regular faz bem”, publicado por Marina Rodrigues em 24 de junho de 2020 na sua coluna Simplificando Cinema.

A Alemanha foi o primeiro país a incluir o streaming dentro das obrigações legais para com o audiovisual ainda em 2017. Na ocasião, o governo alemão exigiu uma cota de tela nas plataformas de streaming de 30% para o produto nacional e um retorno em forma de imposto das receitas líquidas desse player.

Quase 3 anos depois da política pública ativa, uma pesquisa elaborada pelo Fundo Audiovisual Alemão retorna com dados expressivos para o setor e sociedade em geral. Houve um aumento de 12% do consumo em 2019 em relação aos anos anteriores, o que chegou a expressiva soma de 1,19 bilhão de euros.

O aumento do consumo prova que esse novo modo de ver irá, de fato, ressignificar muitas práticas de mercado e mais uma vez evidencia o seu valor econômico para todo e qualquer país que terá recursos alocados em produções nessas plataformas.

Para efeitos de pagamentos e contribuições do streaming aos fundos alemães, o mercado deve pagar um retorno de 1,8 a 2% do que incide das suas receitas líquidas anuais e do valor das obras alemãs adquiridas e co-produzidas por eles.

A participação do mercado de streaming fez com que a Alemanha pudesse iniciar 2020 com verbas sobrando, o que possibilitou a criação de uma renda emergencial para os profissionais do audiovisual. O Fundo ao que pertence à pesquisa (abreviado de FFA), tem linhas de captação para o mercado exibidor, o qual como todos sabem, vem padecendo sem verbas e sem saber a quem recorrer para continuar funcionando.

O mercado audiovisual alemão agora se torna ainda mais um case de sucesso e nos serve de estudo para entender como a participação em políticas de cota de tela servem para impulsionar as receitas das plataformas e, consequentemente, alimentam a cadeia de produção.

Esse cenário ainda parece fantasioso para a produção audiovisual brasileira. Aqui, o streaming apostou na criação de séries, com destaque para “3%” e “Bom Dia, Verônica”, mas o catálogo conta com propriedades como Maldivas, Samantha!, O Escolhido e Ninguém Tá Olhando que foram canceladas e se tornam peças incompletas. Não que a Netflix tenha a obrigação de manter séries que não fazem sucesso, mas basta colocar em comparação com qualquer país que fica claro que o investimento que eles fazem aqui se concentra mais em divulgar séries e filmes estrangeiros do que em produzir séries e filmes nacionais.

O próprio evento do serviço, que dá nome a esse podcast, é um exemplo dessa cultura de glorificar o que vem de fora em detrimento da produção cultural nacional. Por essa razão, é mais do que necessário que a Netflix seja regulamentada no Brasil.

Uma empresa que gasta milhões aperfeiçoando seus algoritmos, têm dinheiro para pagar impostos. Sem falar que ela não é só um serviço de streaming. A Netflix está expandindo sua marca para licenciar produtos como brinquedos, roupas, livros, videogames, podcasts e outros. Ela agora é uma multinacional multimídia. E seria preciso muitos episódios para destrinchar as minúcias deste império contemporâneo que eliminou concorrentes gigantescos e se põe no mesmo nível de titãs da indústria.

A lição que se pode tirar de toda essa pesquisa é simples. A Netflix é muito mais esperta do que parece. Ela está sempre expandindo seus negócios com o mínimo de gastos. E por último, a Netflix está de olho em você. Seus dados são tudo o que ela precisa para continuar se aperfeiçoando, e você os cedeu de livre e espontânea vontade quando clicou no botão “aceitar” do Termo de uso e Declaração de Privacidade.

A empresa que nasceu com o slogan “Nós queremos entreter o mundo.” rapidamente viu que só isso não era o suficiente. Sem regulamentação, eles têm a faca e o queijo na mão para fazer algo muito além de entreter. Agora, eles têm alcance e tecnologia o suficiente para dominar. Não apenas o mercado, mas também a cultura.

[Começa a tocar Every Breath You Take da banda The Police]

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