TUDUM 1x02: Tudo Sobre Minhas IP’s

Arthur Albano
19 min readJul 11, 2023

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Essa é a transcrição do segundo episódio do podcast “TUDUM: Como a Netflix mudou o jogo”, um produto produzido por Arthur Albano, João Pedro Maia e Odara Creston para a disciplina de Cultura e Linguagem das Mídias do curso de Jornalismo da Universidade Federal da Ceará, a UFC.

Para escutá-lo, clique aqui.

Qual a primeira coisa que você faz quando adquire um cofre? Você guarda algo importante dentro. É com esse raciocínio que Reed Hastings e Marc Randolph contrataram Ted Sarandos para gerenciar seu grande empreendimento. Se agora eles tinham um streaming, faltava o conteúdo para ofertar ao público. E era preciso criar um grande acervo, um que mantivesse os assinantes do serviço confortáveis o suficiente para não saírem dele.

Era hora de licenciar e criar!

Olá, meu nome é Odara Creston e você está ouvindo o “Tudum: Como a Netflix mudou o jogo?”, um produto da disciplina de Cultura e Linguagens das Mídias do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Ceará, a UFC, produzido em conjunto com meus colegas Arthur Albano e João Pedro Maia.

Agora que temos uma breve noção de como a Netflix surgiu no mercado, é hora de entender como ela se mantém. A empresa sobreviveu a guerra contra a Blockbuster atualizando o ramo de aluguel de DVD’s, mas agora que a franquia de locadoras mais famosa do mundo estava oficialmente fora da jogada, a Netflix se encontrava livre para fazer o que quisesse. No entanto, ela voltou para a mesma estratégia que utilizou antes do seu lançamento: criar um acervo. O próprio Reed Hasting, CEO da Netflix, fala sobre esse movimento da empresa na introdução do seu livro “A Regra é Não Ter Regras” de 2020.

O mais interessante é que, diferentemente de boa parte das empresas que fracassam quando a indústria muda, a Netflix respondeu de forma bem-sucedida, ao longo de apenas quinze anos, a quatro grandes transições que transformaram o ramo do entretenimento e dos negócios:

De DVDs por correio ao uso da internet para streaming de séries e filmes já lançados;

Do streaming de conteúdo antigo ao lançamento de conteúdo novo e original (como House of Cards) produzido por estúdios externos;

Do licenciamento de conteúdo de estúdios externos à construção do próprio estúdio interno, criando programas de televisão e filmes premiados (como Stranger Things, La Casa De Papel e The Ballad of Buster Scruggs.)

De uma companhia dos Estados Unidos a uma empresa internacional que entretém pessoas em 190 países.

É através dessa fala que estruturamos esse segundo episódio, pois ele sintetiza bem a evolução da Netflix desde seu lançamento no ramo do streaming. A empresa, que já tinha acordo com vários estúdios de cinema para distribuição de DVD’s, não tardou em licenciar séries e filmes para seu streaming. A tática era fazer uma transição suave para aos poucos ir substituindo a mídia física pelo consumo de “mídia over-the-top”.

Mas o que diabos é essa “mídia over-the-top”? O site AppsFlyer explica de forma didática em sua página de glossário. Segundo eles:

O consumo over-the-top ou OTT, mudou completamente a dinâmica entre os consumidores e os produtores de mídia. No modelo de mídia tradicional, um distribuidor, como uma rede de transmissão, estação de rádio ou provedor de TV a cabo, reúne diferentes conteúdos e os reproduz de acordo com uma programação predeterminada. O OTT, por outro lado, ultrapassa os limites dos distribuidores e permite que os consumidores façam o login em um aplicativo ou site de um produtor para assistir/ouvir qualquer conteúdo sempre que quiserem.

Essa é a primeira grande mudança pela qual a Netflix sobreviveu. A segunda era justamente ter um acervo para sustentar a ideia de streaming. Uma ideia tão revolucionária na época, que permitiu acordos feitos a preço de banana. Essa história é contada no livro “Netflixed: The Epic Battle for America’s Eyeballs” da autora Gina Keating. No capítulo 14, ela relata:

A Netflix teve que trabalhar duro para acumular sua biblioteca de streaming, primeiro selecionando programas aos poucos, como fez com South Park do Comedy Central, e depois fechando acordos para pacotes de programas, como o sucessos do horário nobre do ABC Television Group: Lost, Grey’s Anatomy e Desperate Housewives, bem como programas infantis populares do Disney Channel.

A cada ano, os acordos melhoravam um pouco, embora a Netflix ainda não fizesse parte dos acordos de distribuição de uma década para entretenimento doméstico. Dúvidas sobre o crescimento de longo prazo do vídeo online eram tão difundidas que a Netflix conseguiu fechar um acordo com o canal de TV paga Starz pelos direitos de streaming de seus filmes por dois anos por meros 25 milhões de dólares. O acordo de licenciamento para os títulos de filmes de primeira linha da Starz deu ao serviço de streaming legitimidade instantânea como um provedor de conteúdo igual a TV a cabo, mas por uma fração do preço.

Um acordo semelhante com a NBC Universal, para uma ampla seleção de programas de televisão clássicos e de sucesso, incluindo a disponibilização do Saturday Night Live no dia seguinte ao da exibição, foi igualmente barato.

Reed Hastings informou que a Netflix tinha dinheiro para gastar em programas de TV, filmes e conteúdo direto para o vídeo, mas as aberturas para estúdios e outros proprietários de conteúdo passaram despercebidas.

A represa finalmente se rompeu com a assinatura de um contrato de licenciamento de cinco anos de US$ 800 milhões para novos lançamentos e títulos de biblioteca de propriedade da EPIX, um serviço de televisão por assinatura de propriedade da Paramount Pictures, Lionsgate e Metro-Goldwyn-Mayer. O preço notável — relatado como “perto de 1 bilhão de dólares” nas negociações — fez com que licenciadores em potencial entrassem nos escritórios da Netflix em Beverly Hills para falar sobre suas estratégias de streaming. A indústria do cinema — diretores, atores, roteiristas e outros artistas — queria discutir sua participação nas receitas de vídeos online. De repente, todos estavam prestando atenção.

Capa do livro “Netflixed: The Epic Battle for America’s Eyeballs”

O ditado “cuidado com o que deseja” é mais do que aplicável à situação da Netflix entre 2007–2010. Se antes eles tinham vencido a Blockbuster, agora a popularização e os acordos de licenciamento feitos com preços muito baixos chamaram a atenção das redes de TV à Cabo que viam na empresa uma forte concorrente. E se o telespectador cancelar sua assinatura de TV para se tornar cliente exclusivo da Netflix? Esse era um medo que crescia na cabeça dos investidores e analistas dos grandes canais de TV à cabo. Outra consequência foi que os acordos começaram a subir de preço toda vez que precisavam ser renovados. Os grandes estúdios perceberam que estavam sendo feitos de bobo pela Netflix, então era hora de ver até onde ela estava disposta a pagar pelo conteúdo que eles tinham a oferecer. E a Netflix pagava.

Tudo para ter séries como The Office, Friends, Twin Peaks, Arquivo X e outras no catálogo. Dessa forma, unindo um acervo diversificado com a praticidade do streaming, a Netflix conseguiu cumprir sua principal meta: atrair e reter assinaturas. No entanto, licenciar não era o suficiente. Com o aumento da taxa de renovação dos acordos de licenciamento, a Netflix se viu perante um novo desafio. Como economizar dinheiro e manter o público interessado? A resposta era simples. Criando suas próprias séries.

[Começa a tocar a abertura de House of Cards]

IP é uma abreviação para Intellectual Property, traduzida de forma direta como Propriedade Intelectual. Esse termo define a proteção de qualquer material pelos seus portadores, servindo não apenas para conteúdos midiáticos como também para ideias. IP e Patentes são termos bem parecidos, e que se encaixam sob um termo maior, um portfólio. Desde o começo, a Netflix sempre registrou patentes como a ideia de aluguel de DVD’s de forma online e até mesmo o envelope pelos quais realizava as entregas.

A partir dos streamings é que a coisa se torna um pouco mais complicada. Filmes e séries são propriedades intelectuais de seus estúdios. Então se, por exemplo, a Netflix quer exibir Friends, ela precisa obter a licença de exibição de todos os episódios daquela série, porque ela é de propriedade intelectual do estúdio Warner Bros. E como vimos anteriormente, licenciar é caro. Então é muito mais jogo criar séries e ser o dono das suas propriedades intelectuais.

Como Gina Keating explica no posfácio do livro Netflixed: The Epic Battle for America’s Eyeballs:

À medida que o streaming crescia, os estúdios de cinema começaram a desistir de acordos exclusivos e a exigir que a Netflix e outros serviços comprassem títulos em massa, em vez de escolher os que sabiam que repercutiriam nos espectadores. Esses fatores contribuíram para uma reformulação maciça do catálogo da Netflix em 2011, que fez Sarandos e Hastings dar uma nova olhada em um negócio que a empresa havia tentado e abandonado anos antes — a produção de conteúdo exclusivo.

A Red Envelop Productions da Netflix, formada em 2004, apoiou pequenos cineastas independentes e comprou vários títulos baratos de festivais de cinema. O negócio foi fechado em 2009 depois que Reed Hastings determinou que estava distraindo sua equipe de seu objetivo principal de adquirir assinantes. A empresa havia se aventurado na criação de conteúdo dois anos depois com o clone de The Sopranos, Lilyhammer, mas o próximo projeto tinha que ser de uma magnitude diferente. A Netflix teve que alcançar as fileiras de assinantes de TV a cabo e assumir aspectos de canais a cabo premium como HBO e Showtime para direcionar seus assinantes para o campo do streaming. Para conseguir isso, as produções tinham que ser de primeira classe.

Entre os projetos em consideração estava um remake de uma série de TV britânica chamada House of Cards, ambientada no Congresso dos Estados Unidos, trazida para a Netflix pelo diretor David Fincher e pelo ator Kevin Spacey. Os dados mostraram que, embora os assinantes da Netflix não procurassem os filmes de Spacey com frequência, uma vez que descobriram o ator, muitas vezes passaram a assistir a todo o seu trabalho. Os filmes de Fincher, incluindo O Curioso Caso de Benjamin Button, A Rede Social e Millennium compartilhavam o mesmo atributo.

A série britânica original também conquistou uma boa parte dos usuários da Netflix. Munida de dados que mostravam um amplo público potencial, a Netflix destinou 100 milhões de dólares para duas temporadas do programa, que estreou com aclamação da crítica e repercussão popular em 1º de fevereiro de 2013.

Nesse ponto, a Netflix já tinha dado o próximo passo. Ela tinha um número de assinantes que ameaçava a Comcast, maior operadora de TV dos Estados Unidos, e, agora com produção própria, também ameaçava canais que se sustentavam pela qualidade superior de suas produções, como a HBO. Então o que faltava? Revolucionar a indústria mais uma vez.

House of Cards é conhecida por ter instaurado o modelo de lançamento da Netflix. Ao invés de lançar episódios semanais, a empresa optou por lançar todos os 13 episódios de uma vez só, deixando nas mãos do telespectador a opção de consumir a série na velocidade que ele quiser. O ato de maratonar ficou conhecido com uma prática que a própria Netflix incentiva, já que as séries são feitas para funcionar nesse estilo de binge-watching.

Como explicam as autoras do artigo “Estilo de Vida Netflix: Uma nova maneira de ver televisão”, Iluska Maria e Lívia Maia:

A expressão da língua inglesa significa assistir de uma vez só. O verbo binge, segundo o dicionário Macmillan em tradução livre: uma ocasião em que alguém faz em excesso algo que gosta muito, como beber. A expressão binge watching tem sido utilizada para o que os brasileiros conhecem como maratona, que indica uma grande quantidade de conteúdo audiovisual assistido em uma “sentada”. Como se fosse realmente uma competição, uma corrida para chegar.

Esse comportamento é fortemente criticado por Chris Smith, que escreveu em 2014 um artigo para o TechRadar sobre o efeito de assistir Netflix compulsivamente. O que ele diz é o seguinte:

Mesmo um único episódio tem tantos altos e baixos que, no final, você está tão exausto que fica menos receptivo às ideias emocionais e intelectuais que estão sendo produzidas. Mesmo assim, clicamos e assistimos a outro.

Muitas vezes, parte do motivo pelo qual conseguimos assistir a outro episódio é porque alguns aplicativos da Netflix reproduzem automaticamente o próximo, tornando a continuação da maratona algo absolutamente sem esforço. A Netflix diz que é mais orgânico assim — também significa que, se você não fizer nada, os episódios continuarão chegando.

A ideia de “binge watching” parece boa na prática, mas como visto nas séries atuais, ele também tem sido o responsável pelo rápido esquecimento por parte do público. A experiência é muito rápida, e as pessoas ficam na ânsia de assistirem tudo para não tomarem spoiler, de forma que o “fôlego” de uma série não dura mais que algumas semanas. Em contraponto, algumas produções levam anos para ganharem novas temporadas, dificultando uma fidelização do público que é bombardeado por novas produções no lugar.

Os treze episódios de House of Cards são a demonstração perfeita de como um teste se tornou bem sucedido, e como o que dá certo em uma época se torna um defeito mais na frente. Cito como exemplo um artigo da Vulture intitulado “Como saberemos se House of Cards da Netflix foi um sucesso ou um fracasso?”, escrito por Josef Adalian no dia 31 de Janeiro de 2013. Nele, o autor escreve:

Todos os treze episódios da primeira temporada de House of Cards estreiam na Netflix na sexta-feira, mas o pessoal que administra o serviço de vídeo insiste que não dá a mínima se a América corre para assistir à série de David Fincher e Kevin Spacey neste fim de semana. Ou no próximo fim de semana, ou no próximo mês, aliás. Os executivos disseram que podem nunca revelar quaisquer informações sobre quantas pessoas assistem ao thriller político de mais de US $ 3 milhões por episódio — ou o número de visualizações de qualquer uma das outras quatro séries originais que serão lançadas este ano

Mas, por enquanto, pelo menos, a Netflix está se recusando a jogar o jogo de números totalmente americano. Em uma carta aos investidores algumas semanas atrás, o CEO da empresa, Reed Hastings, deu uma grande dica sobre o motivo, e tudo se resume a isso: pelo menos a curto prazo, dados sobre quantas pessoas assistem House of Cards logo depois que ele é upado não fazem sentido.

Voltaremos a esse assunto no próximo episódio. O importante agora é notar como de pouco em pouco a Netflix conseguiu moldar o mercado para se estabelecer. Eles tinham um acervo licenciado e estavam criando séries próprias, mas como fazer o público acreditar que as séries daquele streaming tinham uma qualidade equivalente à de canais premium como a HBO? Simples. Com uma boa estratégia de marketing.

Propaganda da Netflix para “Orange is the New Black” com a Inês Brasil:

Porém, antes de adentrar no setor de marketing da empresa, é preciso passar alguns dados sobre a expansão da Netflix. Como o próprio CEO, Reed Hastings, fala em seu livro, a última grande mudança da q Netflix foi sua passagem de empresa norte-americana para uma multinacional que está disponível em mais de 190 países.

A primeira expansão ocorreu em 22 de setembro de 2010, quando o catálogo da Netflix ficou disponível no Canadá. De 5 a 12 de setembro de 2011, a Netflix foi oficialmente lançada no Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai, Peru, Equador, México, América Central e Caribe. Já a expansão para a Europa ocorreu apenas em 2012, quando a Netflix começou a operar no Reino Unido e na Irlanda a partir de 4 de janeiro. Em setembro do mesmo ano, o serviço de streaming foi lançado na Dinamarca, Finlândia, Noruega e Suécia.

Engana-se porém quem pensa que essa expansão ocorreu apenas após o lançamento da primeira série original. Na verdade, a Netflix paralelamente trabalhou seu catálogo enquanto aperfeiçoava o serviço de streaming e expandia suas atividades. Quando House of Cards estreou em 1 de fevereiro de 2013, a Netflix já estava disponível em todos os territórios mencionados. O mundo já não era mais como antes.

E se a Netflix havia mudado o mercado, ela também mudou o marketing ao criar peças publicitárias localizadas para determinadas regiões. Um exemplo é o que ela fez para divulgar Orange is The New Black, convidando a personalidade da internet Inês Brasil para participar de um vídeo bem-humorado que mesclava cenas da personagem Piper, interpretada por Taylor Schilling, com cenas da própria Inês em uma conversa que só seria possível com a ajuda da edição.

Sobre essas estratégias, Bianca Rosenberg, diretora de marketing da Netflix Brasil falou um pouco sobre durante o evento TUDUM, que ocorreu de 16 a 18 de junho. As falas são retiradas de uma entrevista realizada pelos influencers Cris e Panda, disponível no instagram deles @CrisePanda:

Só no Brasil existe a Dona Netflix, a Netinha… Como não entrar na brincadeira? A gente realmente conversa na mesma língua que nossos fãs. O brasileiro faz piada de tudo, brinca com as situações difíceis e tem uma forma leve e criativa de se comunicar. Se eles se sentem tão à vontade para falar, reclamar, pedir, elogiar, brincar e criticar da forma como querem, a gente precisa honrar essa confiança, agradecer de alguma forma a intimidade, mostrar que eles são ouvidos e que estamos no mesmo lugar. Nas redes sociais, a conversa é tão ativa, que o perfil da Netflix Brasil no Twitter e Instagram são as páginas com o maior número de seguidores no mundo comparado com outros países.

Vivenciando seu ápice como um serviço online, a Netflix foi esperta em falar a linguagem das redes sociais. Exemplos não faltam em como o marketing da empresa foi inteligente ao criar peças publicitárias que se aproveitavam da cultura brasileira para chamar a atenção do público, como a Xuxa divulgando Stranger Things por ser uma personalidade dos anos 80, e a publicação de um mashup feito por Yanescudo que unia a série Sense8, produzida pelas irmãs Wachowski, com a música Nhenhenhem da cantora e atriz Maísa.

Essas estratégias pareciam inovadoras e frescas para a audiência que a Netflix queria capturar. Essas peças publicitárias eram joviais e se aproveitavam de memes da época para alavancar a popularidade de séries originais que precisavam de algo para chamar a atenção do público. Pelo menos em Orange is The New Black deu certo. A história das presidiárias de Litchfield garantiu sete temporadas e 91 episódios, uma anomalia para os padrões da Netflix, que quase nunca renovam suas séries para tantos ciclos.

Se eles tinham o acervo, o marketing, o público, o que mais faltava? Apenas uma coisa. O respeito da indústria. E como se consegue isso? Ganhando prêmios. Por isso é hora de falar sobre o chefe de conteúdo da Netflix. O homem que liderou o investimento de 100 milhões de dólares em House of Cards. Guardem esse nome. Ted Sarandos é o homem que vendeu a Netflix para o mundo.

[Começa a tocar The Man Who Sold The World do David Bowie]

Em pequeno perfil publicado pelo Los Angeles Time em 25 de agosto de 2013 por Dawn C. Chmielewski, Ted Sarandos é descrito da seguinte maneira:

Algumas de suas primeiras realizações eram menos visíveis para os consumidores. Ted Sarandos persuadiu os estúdios a mudar a forma de fabricar DVDs para que os discos mais resistentes não quebrassem tão facilmente no correio. Como arquiteto da estratégia de conteúdo da Netflix, ele fechou novos acordos com as redes de TV para que seus programas pudessem aparecer na Netflix uma temporada após a transmissão inicial, em vez de esperar quatro anos para que um programa chegasse à distribuição.

Essa nova abordagem apresentou novos espectadores a programas aclamados pela crítica como “Breaking Bad” da AMC, e ajudou a aumentar a audiência quando voltou ao horário nobre na nova temporada. Muitos creditam a Netflix por dar nova vida a caros dramas de TV serializados, que foram ameaçados pela queda nas vendas de DVD e atrito do público.

A aposta mais ousada de Sarandos até agora é a entrada da Netflix na programação original. Como o mais novo comprador endinheirado do setor, com um orçamento anual de conteúdo de US$ 2 bilhões — e até 10% destinados à programação original — Sarandos tem influência para liderar a transformação da TV.

Um cinéfilo descarado que já foi balconista de uma locadora de vídeo, ele mantém uma imagem gigante de Marlon Brando em seu filme favorito, “O Poderoso Chefão”, proeminente no seu escritório. Certa vez, ele se descreveu como um algoritmo humano porque adorava recomendar filmes com base nas locações anteriores de um cliente.

Ainda assim, em uma cidade onde as pessoas são conhecidas pelas companhias que mantêm, Sarandos viaja em círculos poderosos. No início deste mês, ele e sua esposa, Nicole Avant — filha do ex-presidente da Motown Records, Clarence Avant — fizeram uma comemoração do 87º aniversário do cantor Tony Bennett no quintal iluminado por lanternas de sua casa de US $ 5 milhões em Beverly Hills. A lista de convidados incluía Queen Latifah, Sidney Poitier, John Travolta, Vince Vaughn, Will Arnett e a líder da minoria na Câmara, Nancy Pelosi.

Ted Sarandos foi o grande responsável pelo sucesso de House of Cards. Foi ele quem notou que o público estava interessado em consumir pacotes inteiros de séries como testado com o lançamento de Lilyhammer. Ele quem percebeu que a série de David Fincher e Kevin Spacey era uma boa aposta para o serviço de streaming. Seu pensamento era de que os canais de TV à cabo dariam vários bons motivos para produzir House of Cards, então ele precisava de um argumento que o diferenciasse de seus concorrentes. A proposta era produzir uma temporada inteira de House of Cards sem a aprovação de um episódio piloto. A série teria sinal verde para todos os seus treze episódios. Com Orange is The New Black, ele renovou a série antes mesmo do lançamento de sua primeira temporada. Como cita Jenji Kohan, criadora do show, no mesmo perfil do Los Angeles Time:

Ted não parece movido pelo medo. Se eu passasse minha vida apenas escrevendo programas da Netflix, isso não seria uma coisa ruim.

Era esse sentimento que ele queria inspirar nos profissionais da indústria. O de que escrever para a Netflix era uma boa ideia. Só assim, ele conseguiria que a empresa produzisse conteúdo em pé de igualdade com os canais de TV à cabo.

House of Cards, Orange is the New Black e The Crown formaram tríplice coroa de séries premiadas. Só a primeira foi nomeada 56 vezes ao Emmy, prêmio máximo da indústria no quesito séries, vencendo 7 vezes. O drama das presidiárias de Litchfield somou 19 indicações e 4 vitórias, e por último, a série biográfica da Realeza Britânica é quem mais soma nomeações com 63 indicações em diferentes categorias e 21 vitórias, incluindo Melhor Série na edição do ano de 2021.

Mas não foi apenas nas séries que a Netflix se destacou. No quesito filmes, eles foram participando do Oscar aos poucos, ganhando vários prêmios de Melhor Documentária de 2016 a 2018, até que a primeira grande vitória veio com Roma, filme do diretor Alfonso Cuarón que ganhou o prêmio de Melhor Filme Estrangeiro no Oscar 2019. Essa vitória acendeu um alarme na cabeça dos estúdios, porque agora a Netflix estava em pé de igualdade com eles. Se ela podia ganhar prêmios como esse, então agora ela era uma competidora legítima. Claro, que houveram alguns impasses e o serviço de streaming teve que acatar as regras da Academia de Artes, disponibilizando seus filmes em alguns cinemas selecionados para que eles fossem elegíveis ao Oscar. A vitória na categoria máxima de Melhor Filme ainda é um sonho para a empresa, que coleciona oito indicações. Talvez, essa seja a próxima meta a ser alcançada nos próximos anos, e considerando o investimento que eles fazem em comprar filmes de festivais de cinema, não é uma meta distante. Resta saber se o Oscar vai querer igualar um serviço de streaming relativamente recente com estúdios de cinema que têm décadas de história.

Pelo menos no que diz respeito a Netflix versus a Televisão, essa já é uma batalha vencida. Como diz o artigo “Dentro da fábrica de compulsão: como a Netflix engoliu a indústria televisiva” de Josef Adalian, publicado pela Vulture em 11 de junho de 2018:

Os acionistas deram dinheiro para [a Netflix] roubar os principais showrunners da ABC (Shonda Rhimes) e da FX/Fox (Ryan Murphy), comprometendo mais de 400 milhões de dólares para negar a essas redes seus maiores criadores de sucesso. A Netflix também distribuiu contra cheques no valor, em alguns casos, de mais de 20 milhões para uma constelação de estrelas do stand-up (Chris Rock, Dave Chappelle, Ellen DeGeneres), e contratou a próxima geração de apresentadores de talk shows (Michelle Wolf e Hasan Minhaj) e deram um novo lar aos mais velhos (David Letterman e Norm Macdonald ). E no mês passado, anunciou um acordo com Barack e Michelle Obama para fazer programas de TV e filmes.

Por mais misterioso que pareça, o Netflix opera por uma lógica simples, há muito tempo compreendida por gigantes da tecnologia como Facebook e Amazon: crescimento gera mais crescimento. Quando a Netflix adiciona mais conteúdo, ela atrai novos assinantes e faz com que os existentes assistam a mais horas de Netflix. À medida que passam mais tempo assistindo, a empresa pode coletar mais dados sobre seus hábitos de visualização, permitindo refinar suas apostas sobre a programação futura. “Mais shows, mais tempo assistindo; mais tempo assistindo, mais inscritos; mais inscritos, mais receita; mais receita, mais conteúdo”, explica Ted Sarandos, diretor de conteúdo da Netflix.

Até agora, funcionou espetacularmente bem: a Netflix passou de cerca de 33 milhões de assinantes globais antes da estreia de House of Cards para mais de 125 milhões hoje. Os analistas de Wall Street previram que a Netflix pode flertar com 200 milhões de assinantes até o final de 2020; em 2028, disse um analista da empresa Morgan Stanley, 300 milhões são possíveis. “O que me mantém acordado à noite é a escala”, diz Sarandos. ‘É uma quantidade impressionante de programação que está sendo produzida aqui. Como continuamos escalando isso?

Para a Netflix, a resposta veio na forma de coisas estranhas.

[Começa a tocar a música de abertura de Stranger Things]

Um dos maiores sucessos globais da Netflix surgiu das mentes de Matt e Ross Duffer, popularmente conhecidos como Irmãos Duffer. Eles queriam criar algo que parecesse como um livro do autor Stephen King.

A série, que na época se chamava Montauk, teve um piloto escrito e entregue para Shawn Levy, conhecido por dirigir os filmes do herói Deadpool. Levy foi atrás dos canais de televisão para produzir aquele piloto, mas recebeu uma negativa de todos. Então, ele recorreu à Netflix.

A negativa veio do fato de que a série era feita para adultos, mas protagonizada por crianças. O tom sombrio afastou as redes de TV que não encontravam sentido naquela produção. Ou eles queriam retirar as crianças ou suavizar o conteúdo. A Netflix, entretanto, tinha um trunfo na manga. Eles sabiam que filmes dos anos 80 faziam sucesso graças ao algoritmo, de modo que produzir Stranger Things não era um golpe arriscado. Era uma empreitada previsível. Não deu outra, assim que foi lançada no final de 2016, a série se tornou um fenômeno no mundo todo, mas caíram acusações de que ela era uma “criação do algoritmo”.

Um pouco sobre os bastidores da produção é descrito no livro “A Regra é Não Ter Regras” de Erin Meyer e Reed Hastings. No capítulo 4, ela revela:

Na primavera de 2015, o roteiro foi comprado e o prazo se aproximava, mas a Netflix ainda não tinha um estúdio. Sucessos como House of Cards e Orange is the New Black foram produzidos por outros estúdios e então licenciados exclusivamente para a Netflix. A empresa ainda não começara a produzir conteúdo por conta própria. Agora, ela entrava em uma nova fase. Ted tinha deixado claro: nós mesmos produziríamos os próximos programas originais.

Stranger Things tornou-se o grande sucesso da plataforma. Na data que este podcast está sendo gravado, a série se encontra na sua quarta temporada, e não parece que perdeu o fôlego desde a estreia em 2016. O motivo de tanto sucesso não veio do algoritmo, mas sim da concepção do show pelos Duffer Brothers. Entretanto, seria ingenuidade não comentar sobre o algoritmo que ajudou na divulgação da série. É por isso que vamos falar sobre ele no próximo episódio.

[Começa a tocar Algorithms do Kasabian]

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