Os Demônios dentro do Armário…

Arthur Albano
9 min readJan 7, 2024

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ALERTA: este texto aborda assuntos como depressão e suicídio, o que pode ser gatilho para algumas pessoas. Caso você se identifique, tenha depressão ou pensamentos suicidas, procure apoio no Centro Voluntário à Vida pelo telefone 188

Na quinta-feira, 12 de outubro, a influencer Karol Eller morreu aos 36 anos. Filiada ao Partido Liberal (PL) e simpatizante a ideias da extrema-direita, a existência de Karol sempre foi questionada no que tangia a sua sexualidade. Afinal, como uma mulher lésbica conseguia permanecer existindo em um ambiente de intenso preconceito e conservadorismo? A resposta veio de maneira trágica. Um mês após anunciar que estava “renunciando a sua sexualidade” e participando do controverso processo de “cura gay” por meio de sua conversão ao protestantismo, Karol não encontrou mais forças para continuar vivendo. Entretanto, sua morte não pode ser atribuída a um único evento. Ele é o produto de um sistema que oprime de forma contínua qualquer pessoa que não esteja alinhada à heterossexualidade compulsória.

Decidi abrir o texto falando sobre esse trágico evento, porque ele mudou minha ideia original. O texto que seria sobre a busca do motivo pelo qual a comunidade queer é tão apegada ao gênero do terror/horror se transformou em algo mais sério. Filmes de terror são apenas filmes, e por mais violentas que sejam suas cenas, elas são feitas de efeitos especiais, truques e computação gráfica. Quando um ato de violência ocorre no mundo real, é preciso cautela para analisar as causas e consequências.

Seja quais forem os processos que constituem a “cura gay” pela qual Karol Eller passou, eles se configuram como violência psicológica. Prática essa que a deputada Erika Hilton (Psol-SP) quer equiparar a crime de tortura em recente projeto de lei apresentado a Câmara dos Deputados no dia 17 de outubro. Em seu perfil no X (ex-twitter), a deputada, que é uma mulher trans, afirmou: “Pessoas LGBTQIA+ não estão doentes. E um suposto profissional da saúde mental ou liderança religiosa que diz ser capaz de mudar a orientação sexual de alguém, na verdade só é capaz de realizar um espancamento psicológico até que a vítima negue à si mesma”.

No Brasil, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) proíbe tratamentos de reversão/reorientação sexual desde 1999, mas eles continuam sendo “oferecidos” por instituições religiosas. O que me faz questionar “o quê” exatamente eles querem curar se diferentes sexualidades não são mais consideradas doenças psicológicas.

A resposta me levou de volta para os filmes de terror.

Meus pais sempre foram evangélicos. Cresci assimilando os dogmas do cristianismo de forma que sempre entendi muito bem a existência de deus, anjos e principalmente o diabo e seus demônios. Por volta dos meus quatorze anos, assisti ao filme “O Exorcista” de 1973, dirigido por William Friedkin. A história é sobre uma garota de doze anos possuída por um demônio que só será expulso por meio de um exorcismo realizado por dois padres. Hoje em dia é uma história batida devido ao grande número de filmes com tramas similares, mas lá nos anos 70, “O Exorcista” foi a obra que colocou uma lente nos filmes de terror. As indicações ao Oscar, incluindo a de Melhor Filme, pareceram indicar que filmes como aquele tinham algo a dizer. O problema é que minha versão adolescente ainda não havia decodificado o quê.

No catolicismo, o exorcismo é um ritual protocolar, sendo exigido estudos e autorizações para ser realizado. Não é qualquer agitação que desperta a curiosidade dos católicos. Já nas igrejas evangélicas, o exorcismo é um algo até que comum. Basta uma busca no YouTube que se encontram vídeos de pastores “expulsando demônios” dos fiéis que gritam e se movimentam como a atriz Linda Blair que interpretou Regan no filme dos anos 70, talvez uma herança da força imagética dessa atuação no imaginário popular.

Enquanto ainda era da igreja, observei que no dia a dia dos fiéis parecia existir apenas uma categoria de demônios: aqueles relacionados a sexualidade. Importavam a Pomba-Gira para explicar o adultério, mas em todos os anos que fiz parte de uma igreja neopentecostal nunca me ensinaram o nome do demônio que causava a homossexualidade. Ao invés disso, o que me diziam era que ele era como uma maldição, e que se a pessoa que estivesse “possuída” bastava renegar aquele estilo de vida e orar com bastante fervor para se libertar. Um discurso bastante violento para um adolescente absorver. O que me abriu os olhos foi ver meu próprio irmão passar por esse processo de “cura gay”. Ele mesmo havia passado por “exorcismos” que no final nunca deram resultado.

Meu irmão não saiu por aí levitando, cuspindo vômito verde ou girando a cabeça, mas diziam que ele tinha um demônio dentro do corpo apenas por ele não ser hétero. A forma como ele foi tratado pela minha família cristã, virou uma chavinha na minha cabeça. Logo eu entendi a mensagem que William Friedkin quis passar em seu filme.

Em “O Exorcista”, Chris MacNeill, interpretada por Ellen Burstyn, é uma mãe que vê sua filha mudar no período da puberdade. Os médicos não conseguem explicar o motivo da mudança, ir a um psiquiatra é desaconselhado e então só resta o poder de Deus para salvar a alma da pobre Regan. Agora retire o elemento sobrenatural e mantenha o resto. Quantos pais não veem seus filhos descobrindo a própria sexualidade e acham que precisam de uma explicação? Antigamente esses filhos eram levados aos médicos que diziam que a homossexualidade era homossexualismo, com o sufixo — ismo adjetivando uma característica inerentemente humana como doença. Quando a medicina provou que ter uma orientação sexual diferente não era uma questão biológica, sobrou aos preconceituosos respaldarem seus preconceitos com a religião. Logo a palavrinha com D apenas mudou de doença para demônio.

No livro original, escrito por William Peter Blatty, fica implícito que um dos protagonistas, o Padre Karras, é gay. O filme de Friedkin traduz esse subtexto de maneira sutil. É na sua relação com outro homem, Padre Dyer, que vemos como esse afeto tenta resistir a religião. O que o filme mostra, no entanto, é um Padre Karras desiludido, perdendo sua fé e amargo com a vida que leva. Seria devido a sua sexualidade reprimida? É uma leitura válida, assim como a leitura de que o demônio no corpo de Regan é uma metáfora para tudo o que as pessoas gostam de enxergar como um “demônio”.

Um paralelo interessante é o fato de Regan ser uma menina criada por uma mãe solteira em processo de divórcio com um pai ausente. A quebra dessa família nuclear é o que a deixa exposta ao demônio Pazuzu, com essa figura paterna voltando na figura de Padre Karras para salvar a menina através do cristianismo. Parece um cenário familiar? Para responder basta olhar os cristãos que defendem a família de tudo, querendo proteger a pureza de seus filhos da ideologia de gênero, e só vão conseguir isso se a família nuclear for mantida intacta. Quando eu era da igreja, cansei de ouvir as mães se culparem pela sexualidade de seus filhos como se alguma atitude delas tivesse os deixado expostos a algum tipo de demônio.

De alguma forma, parece que os pastores das igrejas neopentecostais perceberam que seus fiéis mais exorcismos. Enquanto na igreja católica esse tipo de ritual é até abafado, na fé ao lado ele é encarado como um ato de coragem. William Friedkin incutiu na cabeça do público que o sacrifício de Padre Karras foi o que salvou a menina Regan de um demônio poderosíssimo. Cinquenta anos depois e ainda existem pessoas que acreditam que seus sacrifícios vão salvá-las de demônios inexistentes.

Em 22 de fevereiro de 1998, João Luiz Santolin deu uma entrevista a Folha de São Paulo falando sobre sua vida e do Movimento pela Sexualidade Sadia (Moses). Em dado momento ele responde sobre a ajuda pastoral que recebeu dizendo o seguinte: “[o pastor] Dizia que Deus me amava e que Ele podia transformar minha vida. Quando entrei na igreja, estava cheio de espíritos malignos. Às vezes os espíritos imundos escravizam os homens. Oraram por mim e fui libertado.”. No que a Folha indaga: “Os espíritos eram responsáveis pela homossexualidade?”. Santolin responde com duas palavras “Com certeza”.

Quase vinte anos depois, em 2017, Sérgio Viula, um dos fundadores da Moses concedeu uma entrevista para Veja em que rebateu as crenças do grupo e disse com todas as palavras: “Não me arrependi um dia sequer de ter me assumido gay. Sou absolutamente feliz ao lado do meu companheiro e da minha família. Cura gay definitivamente não existe”.

Se o Padre Karras era realmente gay em O Exorcista, então ele terminou morto levando o demônio com ele. Sérgio Viula foi mais esperto. Entendeu que não havia nada de errado e mudou sua história. Infelizmente, Karol Eller foi vítima de uma homofobia tão forte que ela mesma a internalizou, e a falta de aceitação da sua própria sexualidade pode ter sido um dos fatores que a levou ao suicídio.

Amigo próximo da influencer, o jornalista Tiago Pavinatto, 39 anos, tweetou o seguinte: “Aos muitos imbecis: eu falei com a Karol na semana passada. Ela chorou ao dizer que estava fracassando em reprimir seu desejo por mulher. Claro: as terapias de reorientação sexual são sessões de tortura mental. Em 90% dos casos levam a quadro de ideação suicida. Em 100% dos casos agravam quadros de depressão”.

Os dados mencionados pelo jornalista não possuem fonte. No entanto, é escancarado o quão violenta são essas terapias de reorientação sexual. A posição de quem as defende é de que elas só são ofertadas porque existe procura, que são pessoas incomodadas com a sua orientação sexual. Muitas vezes esse incômodo surge por conta do preconceito sofrido diariamente. E muitos cristãos que defendem que sua fé precisa ser respeitada, utiliza-se dela como escudo para serem abertamente homofóbicos ou transfóbicos.

Ao perpetuarem a ideia de que orientações sexuais e identidade de gênero são atreladas a demônios, eles literalmente atribuem tudo que está ligado a essas questões ao que existe de mais maligno em suas crenças. Por essa razão muitos homens héteros, cristãos e cidadãos de bem dizem que “preferem um filho bandido que um filho gay”, porque na concepção deles, Deus pode perdoar o pecado do roubo, mas um filho gay requer um sacrifício. Na verdade, um exorcismo.

E é justamente por isso que existe essa ideia de cura gay. Ela é só outro nome que se dá para rituais de exorcismo. Que historicamente são extremamente violentos, levando muitas vezes a morte dos “possuídos”. Na mão de extremistas religiosos, esses processos se tornam armas de tortura mental em pessoas psicologicamente abaladas que muitas vezes não encontram o apoio e a aceitação que deveriam e procuram a igreja como refúgio. Essa mesma igreja prega que seus corpos são corrompidos, que suas “escolhas” são antinaturais e que dentro delas existe um demônio.

Eu mesmo ouvi o que acabei de relatar. Quando crescia lembro muito bem de me olhar no espelho com dezesseis anos e procurar por algum sinal de presença maligna. Nunca “saí do armário” para a minha família, mesmo com as indiretas que eu precisava de oração. As profecias de um final trágico para a minha vida que supostamente deveriam me alertar só abriram meu olho para o quão problemático era esse discurso. Em conversa com minha mãe evangélica, eu disse que respeitava a fé dela, mas não acreditava que existia um demônio dentro de mim. Não sei em que ponto ela está hoje, mas minha mãe reconhece o quão traumático foi o processo que meu irmão sofreu tentando expulsar o “demônio” de dentro dele. Hoje, longe da igreja e vivendo feliz em um relacionamento homoafetivo, ele está em paz. Seguro. Uma realidade que não é possível para milhares de membros da comunidade LGBTQIAPN+.

Não em um Brasil cuja Comissão da Câmara aprova um projeto de lei inconstitucional que proíbe o casamento homoafetivo. Não em um país que sempre está no topo das listas das nações que mais matam pessoas trans e travestis. Não em um Estado laico que permite que instituições religiosas realizem a “cura gay” na base do mais puro preconceito.

Não importa o quão chocante seja a violência contra membros da comunidade LGBTQIAPN+, parece que seus corpos não importam. E essa é uma realidade assustadora quando se constata que 50% dos brasileiros são católicos e 31% evangélicos. No fim, o preconceito é o mesmo. E o sangue que escorre dessas cruzes continua o mesmo. O sofrimento sempre será das minorias oprimidas.

Por isso, que apesar das discordâncias políticas, a morte de Karol Eller diz a respeito de toda a comunidade. Ela é o reflexo dos demônios do armário que a fé cristã tenta tanto combater. Talvez seja hora de perceber que os demônios não somos nós que estamos morrendo, mas aqueles que estão nos matando.

Talvez seja o Brasil que precise de um exorcismo.

Esse texto é fruto de um artigo feito para o Neomarsha, projeto de extensão do Curso de Jornalismo da Universidade Federal do Ceará (UFC). O Neomarsha é o resultado de uma ideia que surgiu na cadeira de Comunicação e Gênero, e tem como objetivo uma comunicação não-violenta para todes. Para acessar mais produções desse projeto, acesse o site oficial clicando aqui.

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